Hoje fui a Shanti Nan, uma casa de acolhimento para mulheres pobres e mentalmente incapazes gerida pelas Missionárias da Caridade, a ordem fundada pela Madre Teresa de Calcutá.
O edifício que acolhe as cerca de 150 mulheres que ali sobrevivem fica numa propriedade tranquila fora do centro mas dentro da cidade, longe das buzinas e barulho do transito. O prédio cinzento, de 3 andares, forma um pátio central com relva e algumas árvores. No r/c, na ward D, passei a manhã, das 8h as 12h, com outras duas voluntárias.
As mulheres que ali vivem já não são capazes de sobreviver na rua. Foram abandonadas ou vendidas, adoeceram, tiveram lepra, foram prostituidas e escravizadas. E enlouqueceram.
Nos seus corpos vejo as marcas deste abandono, as cicatrizes das doenças, das feridas. Mas o que esta mais ferido é a sua alma...
Aparentemente, não há nenhuma tentativa de as tratar, de as estimular. São encharcadas em comprimidos e mantidas calmas a base de terapias com choques eléctricos. De cabelo rapado para evitar piolhos, vestidas com roupas surreais doadas em grande quantidade, parecem usar uniforme, mas um uniforme que não enquadra... Na ward D, hoje, mais de metade usava um pólo vermelho com o nome Richard Thompson bordado a amarelo...
Quando nos viram chegar, agarraram-nos as mãos, abraçaram-nos, tocaram-nos os pés. Sorriam desdentadas "Good morning, auntie! Good morning!"
Passamos a manha a fazer um pouco de nada... ajudamos a fazer camas, penduramos roupa, cozemos as iniciais D.W (D Ward) nos vestidos demasiados pequenos que chegaram como doação. Tudo tarefas que algumas mulheres são capazes de fazer perfeitamente sozinhas. Algumas ressentem abertamente a nossa presença. Umas das irmas recusa a ajuda das voluntárias, não podemos ir a ward C.
"Tudo o que precisam é de Amor e Carinho." dizia-me uma das voluntárias, uma inglesa reformada de ser dona de casa que vive em Franca e esta hospedada com a amiga num hotel de cinco estrelas durante as duas semanas de voluntariado que as trouxeram a Calcutá.
O "Amor e Carinho" de que falávamos é dado na forma de verniz. Fazem fila para que lhes pintemos as unhas! Também há umas aguarelas que as voluntárias compraram, o centro não tem qualquer material recreativo próprio.
Observo as mulheres... deitadas pelo chão, encostadas a paredes, com os olhos vazios, sem esperança.
Apercebo-me do desconforto das voluntárias. Uma delas diz-me que só não se vai embora porque moveu a vida toda para vir para Calcutá um mês e não vai desistir. Trabalho, filhas, marido. Ficou tudo em standby para vir para a Índia pintar as unhas a mulheres loucas.
Ontem, outros voluntários, que estão cá há mais tempo e que ficam por períodos de 6 meses, 1 ano ou mais, diziam-me que muitas pessoas vêem aqui pela sua própria experiência pessoal, para viver a sua "experiência de miséria", para curar as suas feridas emocionais e não só olhando a miséria dos outros. Segundo eles, os que ficam mais tempo (eles proprios) são os mais egoístas de todos porque retiram muito mais desta entrega do que dão.
Mas no fundo, tudo é inútil.
"No sirve de nada! Hay milliones muriendose... nosotros solo encontramos algunos."Não concordo, as mulheres que vi estão melhor ali do que nas ruas. Os moribundos de Khalighat morrem mais tranquilos, com algum conforto. Sem estes voluntários morreriam sozinhos, na rua, como cães. Precisam de facto deste Amor e Carinho. Não tenho duvida que as mulheres de Shanti Nan estão melhor ali do que na rua, a ser comidas vivas pelas ratazanas.
Mas pergunto se isto é tudo o que podemos fazer por elas? Uma obra como a da Madre Teresa com certeza tem dinheiro para mais do que isto! Ajuda médica, profissional, estímulos, condicoes para viver uma vida saudável.
A tarde descubro que é impossível saber quanto dinheiro tem as Missionárias da Caridade e onde o gastam porque não há números publicados e ha algumas
criticas... Descubro também que a sua missão é "
salvar e santificar os mais pobres dos pobres", i.e., baptizá-los antes de morrerem.
No fundo o que precisavam era de condicoes para não ter chegado aqui... Não ter nascido ou não ter caído no inquebrável ciclo de pobreza onde pouco dinheiro gera ainda menos dinheiro...
Ou talvez não...
Na India vi pessoas que aceitam a pobreza com um sorriso luminoso, não pedem nada, não desejam nada mais do que tem, partilham tudo, são felizes com os seus trapos, nas suas barracas... vivem a sua religião em cada momento, desde o amanhecer ao anoitecer. Veem Deus em tudo, em todos os actos, em todos os acontecimentos. Serão eles os verdadeiros
iluminados?
Para as mulheres de Shanti Nan os breves momentos que passamos com elas são mais do que suficientes.
Eu fico dividida entre a minha mentalidade ocidental que as quer inundar de condicoes practicas (camas, actividades didacticas, tratamento psiquiatrico) o melhor que o dinheiro possa comprar... e esta estranha forma de vida asiatica onde basta em olhar, um sorriso e partilhar o que se tiver.